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Artigo de opinião Hugo

Artigo de opinião – Radiologia Veterinária

ARTIGO DE OPINIÃO

Radiologia Veterinária

POR HUGO LOPES

Hugo_lopes

“São poucas as histórias reais em que David vence Golias, neste caso, em que o especialista consegue que o jurista o ouça. Esta é uma delas.”

Foi um “bling” do WhatsApp igual a tantos outros recebidos ao longo do dia, mas este “bling”, do passado  dia 8 de agosto, trazia boas notícias sob a forma de um link para o site oficial da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). A mensagem que acompanhava o link dizia apenas “Consegues averiguar?”, insinuando o tom de, como diz a sabedoria popular, “Quando a esmola é grande o pobre desconfia”… 

Tratava-se de um comunicado da APA a anunciar, depois do habitual “sermão” burocrático e jurídico, que “passam a estar abrangidos por esta modalidade simplificada de autorização (o registo), e dispensadas de licenciamento, as seguintes práticas: 

1. Operação em local fixo de geradores de radiação para fins de medicina veterinária. (…) “

Tomei a liberdade de parar por um momento e saborear aquelas palavras e o seu significado. Reclinei-me na cadeira, esbocei um sorriso e pensei: afinal ainda há alguma sensatez neste país… 

É perfeitamente compreensível que uma simples troca de conceitos como esta, “registo” em vez de “licenciamento”, possa passar de certa forma despercebida e não espelhe logo a diferença que isso na prática fará na nossa profissão: mas faz. Faz, e é uma subtil diferença pela qual todos lutámos muito, que foi apenas possível com a união da nossa classe e das suas estruturas representativas, e com o contributo individual de milhares de médicos veterinários, estudantes e do público em geral. É uma pequena troca de conceitos com grandes consequências, no fundo, uma vitória da medicina veterinária que ajuda a defender os interesses da saúde animal e da saúde pública. 

Se há colegas alheios a esta “odisseia” que acabo de referir, passo a  contextualizar: o busílis da história começa com o Decreto-Lei n.º 108/2018, que passou a estabelecer o regime jurídico da proteção radiológica em Portugal. Este veio no seguimento de outros mais antigos e de directivas europeias, sendo indiscutível a necessidade de haver um maior controlo e escrutínio das práticas radiológicas. Com esta nova lei veio também uma mudança de tutela, passando a mesma da Direção-Geral de Saúde (DGS) para a APA. 

A nova lei prevê uma primeira diferença: existem “exposições médicas” e “exposições imagiológicas não médicas”. As primeiras referem que há exposição à radiação de “pacientes ou indivíduos (…) com o objectivo de proporcionar um benefício para a saúde”, as segundas aplicam-se à exposição deliberada de pessoas (…) em que a intenção principal não é proporcionar um benefício para a saúde dos indivíduos expostos” (Decreto-Lei n.º 108/2018).

E como os animais não são considerados “pacientes ou indivíduos”, ocorre a bizarra situação em que a medicina (me·di·ci·na) veterinária passou a ser colocada nas exposições não médicas. Ou seja: para o governo somos medicina, mas estamos sob a alçada dos ministérios da Agricultura e do Ambiente; para o “fisco” somos medicina, mas os impostos que pagamos não refletem isso e para a APA não somos sequer medicina. Adiante. 

O Decreto-Lei n.º 108/2018 prevê, depois, uma segunda diferença ao nível do controlo administrativo: registo e licenciamento. As exigências de segurança são semelhantes para ambas as modalidades, mas o registo é uma versão simplificada, menos burocrática, com menos custos, com requisitos possíveis de cumprir em tempo útil (ao contrário do licenciamento) e teoricamente aplicável em contextos de risco mais baixo que o licenciamento. No início da aplicação desta lei, a medicina veterinária foi colocada na modalidade de licenciamento, um verdadeiro pesadelo burocrático, sendo então tratada como um sector que representa um elevado risco para a saúde pública e ambiental, o que é totalmente descabido. 

Para entender as diferenças em termos de risco, é necessário compreender que a radiologia não é toda igual. Existem vários tipos de radiação com propriedades diferentes e, enquanto umas param no papel, outras atravessam chumbo.

Um raio-x dentário, por exemplo, emite uma dose efetiva comparável a dois dias de exposição à radiação de fundo (0.005 mSv), enquanto um acelerador linear mata células na radioterapia. O primeiro caso utiliza energia na ordem dos milhares de volts, o segundo dos milhões.

Tudo isto para dizer o quê? Para assinalar que existem diferenças muito significativas entre as várias radiações e máquinas, não podendo ser todas tratadas da mesma maneira. Desta forma, e visto que no nosso país não existem aceleradores lineares em veterinários, seria de supor que a modalidade de registo fosse aplicável no âmbito do exercício da nossa atividade. Supusemos mal. Isto porque a APA misturou ortopantomógrafos de dentária humana com raio-x veterinário, juntou uma pitada de braquiterapia, marinou numa unidade de medicina nuclear e atirou tudo para o mesmo tacho chamado “licenciamento”. A situação causou celeuma no seio de várias profissões, levando a que fossem colocados em marcha diversos esforços no sentido de alterar esta situação. Houve quem se tenha indignado, escreveram-se cartas e assinaram-se petições públicas por iniciativa de vários intervenientes.

De destacar o papel decisivo das ordens médicas que se uniram contra a aplicação desta lei numa tomada de posição conjunta (médicos, dentistas e veterinários), dos movimentos de cidadania, através de petições públicas (uma de estomatologistas, dentistas e médicos veterinários e uma outra apenas de médicos veterinários) e de toda pressão social que se conseguiu gerar em torno do assunto. Nomeadamente, pela Ordem dos Médicos Veterinários (OMV), pela Associação Portuguesa dos Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC) e pelo Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários (SNMV). 

São poucas as histórias reais em que David vence Golias, neste caso, em que o especialista consegue que o jurista o ouça. Esta é uma delas. Com a APA a remeter a medicina veterinária para a modalidade de registo ficamos alinhados com a restante legislação europeia, o que irá facilitar, em muito, um exercício da nossa profissão. Esta alteração traduz-se, essencialmente: numa maior facilidade em legalizar práticas veterinárias, sem obrigar a uma avaliação prévia de segurança por um perito em radiologia (profissão com muito poucos especialistas); numa redução de  custos; e num ganho de tempo em termos burocráticos, reduzindo, assim, a probabilidade de incumprimento da lei. Não obstante, quem for apanhado em incumprimento continuará a ser severamente multado.

Apesar de algumas vozes de desalento, essas que sempre as há, não restam dúvidas de que este novo enquadramento legal vem aliviar muitas unidades de radiologia veterinária que têm estado encerradas ou a funcionar à margem da lei sob o peso das impossibilidades burocráticas exigidas. As comunidades das zonas do interior do país, sobretudo, podem agora respirar de alívio por terem, daqui em diante, o acesso à radiologia veterinária para os seus animais bastante facilitado. Com esta alteração ganhamos todos: veterinários, tutores e, acima de tudo, ganha a saúde animal e humana, que é o motivo da nossa existência. 

Mas, mais importante do que esta conquista foi o que aprendemos com ela. De entre as várias “pressões” exercidas à APA (por parte das ordens profissionais, de organizações profissionais, da comunicação social, etc.), não podemos deixar passar em branco a petição pública “Regras justas para a radiologia veterinária” criada pela APMVEAC e promovida pelo SNMV, cujo principal objectivo era precisamente a alteração da modalidade de licenciamento para a de registo.

Na maior união de cidadãos na história da classe veterinária, mais de 7800 assinaturas foram entregues na Assembleia da República (AR) ao abrigo desta petição, obrigando à avaliação do assunto por uma comissão parlamentar (que recomendou uma consulta à APA) e dando acesso à discussão do assunto no plenário da AR. Em torno desta causa uniram-se instituições representativas da classe, professores, alunos, associações de estudantes, influencers, tutores, centros de atendimento médico-veterinário, e, acima de tudo, uniu-nos a nós, médicos veterinários, colegas. Conseguimos colocar de parte a nossa índole de profissionais liberais e abraçar uma causa comum. Houve uma preocupação coletiva e gerou-se empatia mas, sobretudo, aprendemos que, quando nos mobilizamos em conjunto, somos muito mais fortes. Pode até ser coincidência que, após quatro anos desta odisseia, esta alteração tenha chegado logo dois meses depois da entrega desta petição, mas o que é certo é que grandes resultados só podem ser alcançados quando, no seio da nossa profissão, decidimos colaborar em vez de competir. Estamos todos de parabéns. s

Hugo_lopes

Hugo Lopes é médico veterinário de animais de companhia e consultor do Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários.

Este artigo reflete a opinião do seu autor, não refletindo a opinião ou posição do Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários.

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